segunda-feira, 15 de novembro de 2010

MUSEU COLECÇÃO BERARDO - Lisboa


Até 9 de Janeiro de 2011 está a decorrer a exposição temporária, A Culpa não é minha, obras da Colecção António Cachola. A arte contemporânea é uma fonte de energia por vezes violenta e seguramente pouco controlável, abrindo no entanto uma profusão de pistas a seguir, da meditação à seriedade, da ironia à filosofia, da poesia à política. Aqui, Buster Keaton pode facilmente cruzar-se com Schopenhauer, Picasso, Duchamp, César Monteiro ou Pessoa.

Apresentar uma exposição a partir de obras provenientes de uma colecção é tomar de empréstimo a geografia imaginária do coleccionador que as reuniu com paixão e obstinação. Reconstituir esse puzzle cria um ponto de vista (incerto) sobre o mundo (incerto) em que vivemos. Uma verdadeira colecção não tem uma coerência escrita, ordenada, teórica, segue antes um fio condutor – para António Cachola, é a opção de adquirir obras de artistas portuguesas da jovem geração. Iniciada no começo da década de 1990, a colecção conta actualmente com mais de 400 obras. Através do hibridismo próprio da produção artística actual, ela permite situar os artistas portugueses no contexto internacional e avaliar a importância que a arte contemporânea tem hoje na sociedade. A exposição A Culpa Não É Minha, no Museu Colecção Berardo, corresponde a uma viragem para António Cachola: a sua colecção, depois de ser apresentada ao público, no Museu de Arte Contemporânea de Elvas, vai agora enriquecer-se com obras de artistas internacionais, mas sempre com a vontade de as colocar em diálogo com as dos artistas portugueses.

A criação contemporânea portuguesa tem a particularidade de ter uma origem precisa, datada: a Revolução dos Cravos. E desde esse momento, muitos artistas (que, aliás, vivem frequentemente no estrangeiro e são representados por galerias internacionais) criam obras que cruzam a história recente de Portugal com o mundo globalizado (Ângela Ferreira, Maria Lusitano, Fernanda Fragateiro...).

Certos artistas exploram o poder narrativo das imagens (André Gomes, Rui Calçada Bastos…) ou os fragmentos de uma narrativa por vezes conceptual (José Maçãs de Carvalho). Trabalham a linguagem com as suas interacções históricas, sociais, filosóficas e, naturalmente, artísticas (João Louro, André Romão...).

Outros, enfim, prosseguem a experiência da pintura e continuam a forçar o seu espaço e as suas possibilidades (Pedro Calapez, Pedro Croft, José Loureiro, Paulo Brighenti, João Queiroz, Pedro Casqueiro, Gil Heitor Cortesão). Alguns associam a pintura ao vídeo (Bruno Pacheco...). Rodrigo Oliveira liga fotografia, escultura e instalação. Rui Chafes, com as suas formas negras de inquietante estranheza, continua a explorar o campo da escultura. Mas a classificação por medium não consegue abarcar a riqueza formal das obras visto que os artistas se apropriam de todas as formas, meios e linguagens, misturando-os: da escultura à instalação (Pedro Cabrita Reis, Pedro Barateiro, João Pedro Vale, Miguel Ângelo Rocha, Joana Vasconcelos, Miguel Palma, Noé Sendas...); ou da fotografia ao vídeo (Nuno Cera...); do vídeo à instalação (Vasco Araújo, Noé Sendas, Alexandre Estrela...); do vídeo à performance (João Onofre, Ricardo Leandro e César Engstrom, João Leonardo, João Maria Gusmão e Pedro Paiva, Daniel Barroca, André Guedes). Augusto Alves da Silva, por seu lado, explora com os seus enormes panoramas a neutralidade conceptual da fotografia.

O artista é sempre um encenador; um a um, coloca os elementos do visível, procurando a justa coincidência entre as suas imagens mentais, feitas de memória e de amnésia, e as do mundo exterior. A sua fusão cria novos acordes, raccords e combinações do real e produz um mundo paradoxal do qual não podemos no entanto duvidar. Explora e rejeita a antinomia do individual e do universal.

As artes visuais, mas também a música, sintetizam uma expressão contemporânea da colagem, do mixing, do cruzamento de géneros que é necessário para criar novas formas artísticas e culturais. Em Dezembro de 2005, o crítico de arte Jerry Saltz (do jornal Village Voice) citava Day is Done (2005), de Mike Kelley, como um exemplo inovador de «clusterfuck aesthetics» [estética do caos], uma reacção da arte contemporânea à era do multimedia invasor. A arte «desorbitou», sem um real vínculo nacional, manipulando as referências de tempo, de espaço e artísticas. Há artistas portugueses mas não arte contemporânea portuguesa. As noções de «psicogeografia» e de «deriva» utilizadas pelos situacionistas nos anos de 1950 e 60 para se reapropriarem da arte e da cidade numa experiência de vida são, mais do que nunca, actuais, e talvez sejam as formas contemporâneas de reinvestimento de um mundo desconhecido, inesperado, fantástico ou fantasista, exótico até – onde a cultura popular, o arcaísmo se encontram com a modernidade high-tech.

Em muitas obras misturam-se sensualidade e espiritualidade, paganismo e religiosidade, doçura e violência, com a encenação da vulnerabilidade do corpo, tornado simples cliché do mundo mediático, religioso ou da tradição. Os fotógrafos usam os códigos da imagem documental, publicitária ou do cinema de ficção, subvertendo-os (João Paulo Serafim, Luís Campos, Manuel Botelho, Patrícia Garrido, Tânia Simões...).

As obras da precisa e preciosa Colecção António Cachola revelam a não adesão do mundo e das suas imagens, refutam a disjunção entre o sensível e o inteligível, entre o ver e o ter. A Culpa Não É Minha é o título de uma escultura de João Pedro Vale, a de uma árvore nodosa e atada, imponente e encalhada, seca e viva. Este título e esta obra simbolizam bem o olhar do artista sobre o mundo – trabalha-o, absorve-o, com todas as suas contradições, alterações, multiplicidades de aparência e de metamorfose.

Museu Colecção Berardo - Arte Moderna e Contemporânea | Praça do Império | Lisboa | Domingo a Sexta das 10h às 19h (última entrada: 18h30) | Sábados das 10h Ás 22h (última entrada: 21H30)| Entrada gratuita | www.museuberardo.com

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